Quarta-feira, 17 de Maio de 2006

"Recolher obrigatório"

Felizmente ou infelizmente, uma das principais atitudes que um estrangeiro tem que tomar, quando "decide" escolher a cidade de São Paulo como a sua "morada permanente" é saber estar alerta, não subestimar tudo aquilo que possa ter ouvido sobre o grande problema de São Paulo que é a violência; ela existe, tem uma dimensão "absurda", mas não pode estar nas nossas cabeças todos os dias a toda a hora...é sobretudo importante estar atento, estar alerta e não "confiar" na sorte...

Há todo um esquema de organização que cada um de nós tem que ter, para que não vá parar à "boca do lobo"; desde o bairro que escolhe para viver, as escolas que escolhe para os filhos, os lugares que frequenta, os bairros onde faz a sua vida. Aos poucos vai sentindo uma estabilidade maior, uma "segurança" que nunca pensou conseguir vir a ter, mas nada mais é do que ter criado uma "redoma" que lhe possibilita ter uma vida normal, sem medos e angústias! É dessa "redoma" que surge a nossa passividade quando numa sexta-feira à noite anunciam os ataques a esquadras da polícia, mortes de polícias e "tudo mostra que se prolongará no fim-de-semana".

Infelizmente, habituámo-nos a ver esses acontecimentos "escarrapachados" nos jornais, principalmente em vésperas de feriados ou fins-de-semana prolongados..." fugiram 40 presos este final de semana", "60 conseguiram escapar do presídio do interior do estado e conseguiram capturar 20"... é tão "normal" isso acontecer, que nós próprios quando aproveitamos e viajamos num feriado, comentamos na brincadeira "quantos presos decidiram escapar da prisão este fim-de-semana?" Felizmente ou infelizmente, terá sido essa a nossa reacção neste fim-de-semana! Também "avisados" por familiares e amigos em Lisboa, passámos o sábado e domingo, como se nada tivesse acontecido, pondo "água na fervura" no tema em questão e tentando minorizar o problema.

Segunda-feira acordámos todos para uma semana como as outras, mas começa um "zunzum" que não é exactamente igual às outras vezes; a empregada que devia entrar de manhã não chegou porque não tinha autocarro para apanhar; liga-se a televisão e ouve-se as notícias entre elas de ataques aos "ônibus" que estavam a ser incendiados em vários pontos da cidade, agências de bancos que foram atacadas... Bem, parece que o "fim-de-semana" de rebeliões se prolongou!! O "motorista" que é pontual, aparece uma hora depois do suposto, desesperado porque as ruas estão cortadas, porque veio "de carona"... Mas quem diz que nós próprios reagimos? Pessoalmente confesso que não reagi, achei que tudo se passava na "periferia", "aquela" que não entra no meu dia-a-dia e que "não toca" na minha "redoma"; mas a segunda-feira foi passando, cada vez mais estranha, tudo com comportamentos "diferentes" e só eu a querer acreditar que tudo não passava de uma luta de gangues e polícias que infelizmente nos habituámos a assistir nestes seis anos de Brasil!

Quando chegaram as quatro horas da tarde, em que estava tranquilamente a ler o jornal, sobre os acontecimentos "quentes" do fim-de-semana, à espera das crianças que acabavam as actividades no clube, aparecem os seguranças a pedir às pessoas para saírem o mais depressa possível, "porque temos ordens internas para evacuar o clube" e " se a Senhora não sabe, o Governador do Estado recomendou um recolher obrigatório; todas as famílias devem estar em suas casas até às seis da tarde". Só aí "me caíu a ficha"! Parece que a coisa é séria! Graças a Deus a casa é perto do clube e em cinco minutos cai-me o resto da família em cima; a mais velha não tinha ido para lado nenhum porque o "motorista" tinha ordens do Pai para não saír de casa; a segunda tinha ido para casa de uma amiga e eu tinha ordens "expressas" do meu marido para não ir buscá-la...parecia de propósito, mas nesse mesmo dia estava sem telemóvel - "quebrou" -e eu que tinha saído na maior das descontracções, com os mais pequeninos, acabei por me sentir a pior Mãe do mundo que não se apercebeu da "guerra urbana" que todos anunciaram...tudo isto no meio de perguntas dos pequenos "Mãe, o que é o PCC??", " Mãe, vem aí uma bola de fogo atrás de nós, mas se a Mãe comprar um avião podemos ir para Portugal, ou se fôr preciso para a China...é muito longe? a bola de fogo não vem atrás de nós?"

Como já estava em casa, tratei das coisas pelo telefone -"fixo" entenda-se- , porque mesmo que tentasse, as linhas de telemóveis só deviam estar disponíveis para os PCC´s!! Apesar de tentar saír para ir buscar uma das minhas filhas, que estava preocupada e não conseguia falar comigo, pedi para ela dormir em casa da amiga, para não se preocupar, porque não ía conseguir lá chegar porque o trânsito estava um caos; claro que o trânsito estava um caos, mas qual Mãe não passa duas horas no trânsito para ter todos os filhos em casa?! Mas o "recolher" era "obrigatório" e mais vale prevenir do que remediar!

Passaram-se mais três horas, ao telefone para Lisboa, a acalmar os ânimos, todos de bom senso, mas preocupados com tudo o que viram nos "media"- e que peso têem esses media!-; às 7.30 chegou o "Pater Familias", com 3 horas de viagem contra 20 minutos que habitualmente faz do escritório casa.

A noite foi muito pior do que o dia! Uma cidade fantasma, as casas sem luz, não passava um carro, um silêncio que nem numa quinta no Minho em Setembro se consegue ter . Será que amanhã vai ser pior? Não vai ser e não foi pior; os contrastes acentuados do Brasil provocam este tipo de situações, mas pessoalmente, só tenho pena da "insensibilidade" social que ganhei, para conseguir viver o bom que tem este Brasil!

Ana Vilar

publicado por luso-paulista às 10:26
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De pmm.madureira@sapo.pt a 17 de Maio de 2006
Olá Ana,

Para um "retornado" de São Paulo como eu (vivi no Alto da Boa Vista - St Amaro, de 2002 a 2005 - ajudando a implantar uma multinacional luso-italiana) - foi com muito agrado que li o seu comentário à situação que aí se viveu. Mas, sobretudo, foi a extrema sensibilidade para essa nação complexa, desprendida de palavra bem palavra, que mais me emocionou. É que é necessário ir ao fundo da nossa alma lusitana para ter a humildade de nada entender, e de tudo querer aprender, acerca desse povo hipócrita e carinhoso, racista e de coração aberto, paupérrimamente pobre e desmedidamente rico.. E, São Paulo, "a namorada de toda a minha vida", é o exemplo perfeito dessa gigantesca contradição. Agora, em Cascais, limito-me a sofrer em silêncio quando vejo os telejornais e tento disfarçar as saudades olhando o mar da Guia, como quem olha para o mar da Ilha Bela..

Um Abraço,

Paulo Madureira
Cascais - Portugal


De joselessa a 17 de Maio de 2006
Para todos os "PAULOS MADUREIRAS" Brasileiros em Portugal o meu bem haja.
É com Homens como voces que este pais se vai aguentando.
Recordo hoje os muitos retornados que vieram das Ex. Colonias em 1974/5. Principalmente na Restauração deram uma grande contribuição para a alteração que se deu principalmente nesse sector.
zecas
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